Um ex-presidente no banco dos réus, cinco sessões reservadas e um núcleo político-militar acusado de tentar reverter o resultado das urnas de 2022. O Supremo Tribunal Federal (STF) abriu, às 9h desta terça-feira, 2 de setembro de 2025, o julgamento de Jair Bolsonaro e sete aliados sob a presidência do ministro Cristiano Zanin. O caso foi organizado para andar sem sobressaltos: provas compartilhadas entre os ministros, cronograma definido e segurança reforçada na Praça dos Três Poderes.
O processo mira o que investigadores chamam de “núcleo duro” da conspiração. Estão no polo dos réus o ex-presidente Jair Bolsonaro; o deputado Alexandre Ramagem (ex-diretor da Abin); o almirante Almir Garnier (ex-comandante da Marinha); Anderson Torres (ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança do DF); o tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro); e três generais que foram ministros: Augusto Heleno (GSI), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa) e Walter Braga Netto (Casa Civil e Defesa, vice na chapa de 2022). A Procuradoria-Geral da República, chefiada por Paulo Gonet, sustenta crimes como abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, organização criminosa, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Somadas, as penas podem superar 30 anos de prisão.
O que está em jogo no julgamento
O processo não trata da massa de vândalos do 8 de Janeiro, mas de quem teria planejado e coordenado a ofensiva contra o resultado eleitoral e as instituições. Segundo os autos, a acusação se apoia em três pilares: reuniões e ordens internas para desacreditar o sistema eleitoral; tentativas de envolver as Forças Armadas em uma ruptura; e o uso de estruturas do Estado para monitoramento e produção de narrativas, com menções à chamada “Abin paralela”. A defesa nega a existência de um plano, fala em atos amparados na liberdade de expressão e diz que rascunhos e conversas jamais viraram ações concretas.
Entre as peças de prova citadas estão mensagens e depoimentos do colaborador Mauro Cid, registros de reuniões no Planalto e no Alvorada após a derrota de 2022, além da “minuta” de decreto encontrada na casa de Anderson Torres — documento que, segundo investigadores, previa medidas para reverter o resultado das urnas. Os advogados dizem que a minuta nunca foi assinada, que era uma peça apócrifa e que não houve ordem para mobilização militar.
O foco em cada réu tem especificidades. Bolsonaro é acusado de liderar e incentivar o questionamento sistemático das urnas e de buscar apoio de comandos militares. Braga Netto, Heleno e Paulo Sérgio aparecem em relatos sobre reuniões e pressões de bastidores; Ramagem responde por suposto uso indevido de meios de inteligência; Garnier é citado por tratativas com militares; Anderson Torres, pela guarda da minuta; e Cid, pelo papel operacional e pelos relatos que firmou em colaboração premiada. Todos negam participação em trama golpista.
No campo jurídico, a espinha dorsal da denúncia está na Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021). A abolição violenta do Estado Democrático de Direito tem pena prevista de 4 a 8 anos; o golpe de Estado, de 4 a 12 anos; a organização criminosa (Lei 12.850/2013), de 3 a 8 anos, aumentada para líderes; o dano qualificado contra patrimônio público, até 3 anos; e a destruição ou deterioração de bem tombado (Lei 9.605/1998), de 1 a 3 anos. A dosimetria pode variar por agravantes, atenuantes e pela colaboração de Cid, que pode ter benefício se o acordo for considerado eficaz.
Há, também, efeito político. Uma condenação tem peso simbólico raro — envolve um ex-presidente e generais que ocuparam o topo do governo. No plano jurídico-eleitoral, Bolsonaro já está inelegível por decisão do TSE em outro caso, mas uma condenação criminal por tentativa de golpe marca o histórico do país e redefine a linha vermelha para autoridades que tensionam as regras do jogo.
Como será o rito e o que pode acontecer
A Primeira Turma reservou cinco sessões: 2, 3, 9, 10 e 12 de setembro. O ministro Alexandre de Moraes, relator, abre com a leitura do relatório e o resumo da ação penal. Em seguida, o procurador-geral Paulo Gonet tem até duas horas para expor a acusação. Depois vem a bateria de sustentações orais: oito defesas, com uma hora cada. A ordem é alfabética, mas com uma exceção relevante — Mauro Cid fala primeiro por ser colaborador premiado do caso.
Terminadas as falas, começa a votação. Moraes vota primeiro no mérito (condenar ou absolver e, se for o caso, fixar pena). A sequência será Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e, por fim, Cristiano Zanin. São cinco votos em jogo; três formam maioria. Se houver condenação, a turma define as penas de cada réu, podendo reconhecer a colaboração de Cid para reduzir sua punição. Se a maioria absolver, o processo se encerra ali.
Há uma trava possível: o pedido de vista. Qualquer ministro pode pedir mais tempo para estudar o caso, o que suspende a decisão por até 90 dias. A presidência da turma e o relator organizaram o material probatório e compartilharam dossiês para minimizar esse risco e manter o calendário.
Depois do resultado, cabem embargos de declaração para esclarecer pontos do acórdão. Como a ação tramita na instância máxima, não há “segunda instância” para reexaminar provas; eventuais questionamentos constitucionais residuais podem ser arguidos no próprio colegiado. A execução de pena em ações penais originárias costuma ocorrer após o trânsito em julgado, mas o debate sobre medidas cautelares (como uso de tornozeleira, retenção de passaporte ou proibições de contato) pode surgir de imediato, a depender do voto vencedor.
Em Brasília, o entorno do STF, do Congresso e do Planalto opera sob protocolo de segurança ampliado. Há bloqueios de vias, revista pessoal, varreduras com cães farejadores e monitoramento com drones. A Polícia Militar e a Polícia Federal acompanham redes e grupos de mobilização para prevenir atos violentos. O objetivo é garantir que o julgamento avance em normalidade institucional e com segurança para ministros, servidores e o público.
O país já assistiu a julgamentos marcantes na Corte, como o do mensalão em 2012. A diferença agora é o foco: responsabilidade penal de um ex-presidente e de cúpulas civil e militar por ataques ao Estado Democrático de Direito. A Primeira Turma, com cinco ministros, promete um desfecho mais célere que um julgamento no plenário de 11 cadeiras, mas sem perder profundidade na análise das provas e das teses defensivas.
Do lado das defesas, a estratégia deve combinar três linhas: contestar a existência de um ato inequívoco para romper a ordem constitucional; desqualificar provas obtidas em outros inquéritos como “prova emprestada” sem contraditório; e sustentar que críticas ao sistema eleitoral estão protegidas pela liberdade de expressão. A PGR, por sua vez, deve insistir na soma de indícios, na cadeia de comando e na “passagem ao ato” que conecta discursos, reuniões, minutas e tentativas de mobilizar estruturas do Estado.
Os próximos dias dirão se o colegiado vê um plano real para abolir a ordem democrática ou interpreta os fatos como retórica política e desorganização sem capacidade de execução. O que está em julgamento, no fim, é a linha entre a contestação legítima e o ataque frontal às regras que sustentam a República.